O significado de ser comunista e falsa divergência entre “estudar o Brasil” e “estudar marxismo”
Na internet, uma discussão comum que vejo nas comunidades de esquerda, ainda mais com a ascensão de certos “produtores de conteúdo” autointitulados comunistas, é a respeito da necessidade de se estudar ou não Marx para dizer-se comunista. Ou ainda, baseado nos comentários de Jones Manoel, dirigente do PCBR, sobre uma maior necessidade de “saber de Brasil” em detrimento do “dogmático” e “academicista” estudo dos textos clássicos do cânone marxista, como se essas coisas fossem separadas.
A impressão gerada por esses comentários é que a simples sensação de simpatia às ideias postas por estes criadores e sua visão de comunismo já são suficientes para alguém se considerar ume. Muitos desses comentários também sugerem que falta "ação prática" do movimento comunista e que se faz debates teóricos demais entre comunistas. Surgem então, a partir dessas percepções, pessoas que dizem com orgulho não terem qualquer estudo teórico, afirmando que o mesmo não é realmente necessário; basta apenas observar a realidade (e adicione aqui todos os chavões sobre análise concreta da realidade concreta, material e dialética) para ser um verdadeiro comunista (orgânico!!!).
Este texto pretende ir contra essas teses e mostrar que, precisamos sim estudar se quisermos entender de forma cada vez mais precisa a realidade sob o modo de produção capitalista, mas também indo contra qualquer espécie de “gatekeeping”, vulgo, criar uma barreira de entrada que dificulte as pessoas de se inserirem no marxismo. Ser um simpatizante do comunismo não é diminutivo algum, mas acredito que ser comunista vai muito além disso. Exatamente por isso vejo a necessidade de puxar um debate assim, principalmente com estas pessoas, fazendo um convite sincero a se aprofundarem para além do conteúdo rápido, para de fato tornarem-se comunistas.
Afinal, por que estudar teoria?
A existência de um movimento revolucionário depender da existência de uma teoria revolucionária não é mera bravata de Lênin em "O que fazer?". O livro em seu primeiro capítulo traz críticas a um comportamento que não aparenta ter mudado muito desde 1902, comportamento esse já introduzido neste texto e que se resume ao seguinte: uma suposta oposição entre teoria e "prática", e o ecletismo de um na busca excessiva pelo outro. Uma dicotomia que aparenta ser o padrão nas discussões que apontei na introdução e que não poderia estar mais longe da verdade.
O pensamento de Marx desde seu amadurecimento tem como mote bem claro não apenas a mera crítica da sociedade vigente, ou uma concepção fechada em si mesma de interpretação do mundo, mas o entendimento de criticar a realidade a partir de suas características internas, de maneira contínua em direção a intervir na própria realidade. Não existe separação entre prática e teoria, não apenas no sentido de uma ter prioridade sobre a outra, mas a práxis marxista, como chamaremos daqui para frente, é esse movimento entre a crítica teórica em direção à ação de intervenção na realidade e vice e versa. E a partir daí, apenas com uma teoria acertadamente revolucionária, que ataque com profundidade as estruturas da sociedade e que só é obtida através da disputa teórica, que é possível uma práxis verdadeiramente revolucionária. Não adianta em nada ter qualquer prática se esta não leva em direção a nossa organização como classe e a disputa pela revolução. Ser eclético quanto a teoria ou até mesmo desprezá-la, em muitos casos, é pedir para continuarmos presos num lamaçal. Mas em que sentido ela é fundamental? Veremos a seguir.
No nosso cotidiano é uma tarefa relativamente simples, quando se existe a intenção, de observar e perceber as violências, desigualdades e demais efeitos causados pelo capitalismo. Vivemos cansados, sem tempo e extremamente dependentes do dinheiro. A questão é que, para além das aparências, existe um como e porque das coisas serem como são. Pilares que sustentam o funcionamento da sociedade capitalista e que, para além da mera observação, precisam de uma investigação criteriosa para mostrarem sua verdadeira face. É o caso da investigação de Marx das mercadorias que, mais do que apenas coisas produzidas visando serem vendidas* e então satisfazerem as necessidades de outras pessoas, são também dotadas de valor, medido através da completa abstração do trabalho humano investido em sua produção, agora mero gasto genérico de tempo e força de trabalho. Sem chegar a esse entendimento, Marx não conseguiria estabelecer o conceito de valor excedente apropriado pelos capitalistas, a famosa mais-valia. Assim, também entendemos que essa apropriação de valor, bem como a própria forma valor e a generalização da forma mercadoria em todos os âmbitos da sociedade são características íntimas do modo de produção capitalista e que a continuidade dessas características ajuda a mantê-lo de pé. Para além de "o capitalismo é ruim" em abstrato, temos toda uma lógica interna que ao ser exposta revela as contradições desse sistema, ao mesmo tempo, revela a necessidade dessas formas serem superadas para atingirmos uma nova sociedade (ou seja, não existem mercadorias socialistas, ok).
O que meu último exemplo quis mostrar é que a partir desta análise de Marx do capitalismo é possível ir além da superficialidade e atacar as raízes desse sistema, ter o entendimento de como esse mecanismo funciona internamente é uma de nossas maiores armas (e se para entender a realidade apenas bastasse observá-la "como ela é", sem uma investigação mais rigorosa, seria preciso tirar a palavra materialismo da boca, pois se trataria apenas de um empirismo** vulgar). Isso não quer dizer que todo comunista nasce sabendo O Capital de cor, mas que esse constante processo crítico, que aos poucos se desenvolve com formação política (leia-se estudar) nos ajuda a dizer muito mais do que "a exploração é errada", nos mostra onde e como atacar esse processo de exploração. O fim da escala 6x1 é uma pauta forte do jeito que é justamente por conta de ferir diretamente a burguesia ao atacar uma das formas de apropriação da mais-valia, que é através do maior prolongamento possível da jornada de trabalho, e para entender isso com precisão, somente a partir de todo aquele processo de investigação.
Claro, se bastasse apenas entender e explicar a realidade, Marx não teria rabiscado a 11ª tese sobre Feuerbach em meio as suas anotações [1]. E é aí que, pelo menos para mim, diferencia um comunista de um mero acadêmico fechado em sua torre de marfim. Ser um comunista é ter essa visão crítica radical da sociedade e planejar coletivamente a ruptura da mesma, é pensar a luta de classes. É, quando possível, estar organizado e participando das lutas da classe trabalhadora, da maneira que conseguir. Não existe leitura mínima para ser um comunista, mas ser um implica em tentar entender o melhor possível a sociedade a sua volta, moldar sua percepção crítica sobre ela e não deixar de estudá-la, mesmo que o mínimo do mínimo e aos poucos. Em suma, ser comunista é ter práxis.
O não caminho da revolução brasileira
Acho pertinente a crítica que fazem a um certo histórico da esquerda pós-ditadura de pensar muito pouco sobre a formação político-econômica brasileira (e com relação a isso, dou um leve braço a torcer ao Jones Manoel). É algo que para a práxis do movimento comunista no país é indispensável, justamente pelos pontos que levantei na seção anterior. Já houve no passado debates sobre o caráter de feudalidade nas relações de produção brasileiras (principalmente em seu período colonial) e se havia resquícios disso no Brasil pré-64. Essa ideia ser ou não correta faz toda a diferença em relação a delimitar o caráter da revolução no Brasil, tendo influenciado críticas e apologias a concepções etapistas que perduram até hoje, por exemplo [2]. Dito isso, é raso afirmar que o mero "entendimento de Brasil" é mais ou menos importante que o entendimento de teoria marxista, pois para delimitar com precisão o processo de desenvolvimento do capitalismo em nosso país é preciso ter um profundo entendimento do mesmo, mais uma vez reforçando a necessidade de combater esse ecletismo teórico.
Mas atenção, por mais que haja essas particularidades acerca do desenvolvimento capitalista e do nosso papel na divisão internacional do trabalho, a "maneira" como o capitalismo "funciona" é global e assim é o seu processo de superação. É preciso ter muito cuidado para não abrir pretextos para certos projetos "nacionalistas revolucionários" e da defesa de supostos "socialismos com características de x país", onde claramente há a defesa de elementos burgueses e relações de produção capitalistas, mas com um verniz vermelho; meras apologias ao velho nacional-desenvolvimentismo, a projetos de "Brasis". O estudo das particularidades serve para delimitar as tarefas necessárias e as táticas em prol da organização da nossa classe rumo a revolução, sem jamais esquecer que a superação do capitalismo só pode ser contemplada internacionalmente.
O que é possível fazer?
Em um mundo onde cada vez mais o consumo de informação precisa ser cada vez mais acelerado e onde o tempo de não-trabalho parece desaparecer cada vez mais, é fácil de entender o apelo por desprezar teoria. É desafiante, leva tempo, está distante do brilho que são as atividade mais "práticas" e está longe de conseguir competir com os estímulos incessantes de dopamina que permeiam a nossa volta, mas é justamente por isso que a própria atividade de buscar conhecimento não deve ficar restrita ao nível individual. Grupos de estudo, de tradução, debates abertos sobre textos críticos se fazem extremamente importantes nesse período por aprofundarem tanto o conhecimento do antes quanto o do agora. E não é qualquer formação coletiva que deva ser incentivada, mas sim uma que seja aberta, livre do dogma, livre de autores e textos proibidos por x indivíduo ou y organização. Se um certo centralismo teorico reamente combatesse desvios reformistas e falsificações, não teriamos esses problemas dentro dos resquícios de movimento operário e estas organizações comentendo tais desvios. Se um certo autor é polêmico dentro do movimento comunista, não tenha medo de estudá-lo, não podem ser tratados qual uma igreja trata seus excomungados. Estude, tire suas próprias conclusões, critique o que achar necessário e até contribua com o debate em forma de texto. Os supostos "debates desenecessários" em sua maioria são brigas de Twitter, jamais terão o mesmo valor qualitativo do que textos de polêmica como aqueles de Marx, Engels e Lênin; estes sim são debates em falta no nosso movimento.
É preciso ajudar aqueles que querem não apenas entender o mundo, mas transforma-lo. E se as ditas organizações revolucionárias não conseguem atender a esta necessidade é preciso que nós mesmos tomemos essa tarefa na medida em que conseguimos fazer algo. Niguém que trabalha 6x1 vai pacientemente ler por horas a fio O Capital (o que por si só já é uma impressão errada, é um livro que ler devagar e bem aos poucos é mais recompensador), mas e estudar trechos junto de outras pessoas com mais experiência? Que tal produzir materiais rigorosamente baseados nos livros com o apoio dos exemplos da realidade em que aquela pessoa vive? Não acho que faltem alternativas que ajudem a elevar o debate, elevar o nível de formação daqueles já simpáticos ao comunismo sem que caia em simplificações, que não taxe as pessoas como incapazes e ignorantes. Já temos diagnósticos rasos demais sobre quais são os verdadeiros problemas da esquerda, todos esses mais preocupados com a forma do que o conteúdo. Façamos então questão de dar um pontapé para elevar o conteúdo não só do aprendizado teorico como das nossas possibilidades práticas.
* O termo mais preciso aqui seria "trocadas", pelo menos levando em conta a análise de Marx que, aos poucos, expõe que o dinheiro em si também é uma mercadoria e que a todo momento o que há são relações de troca entre mercadorias.
** Empirismo aqui é entendido como a concepção filosófica de enxergar o conhecimento como fruto apenas da percepção sensorial da realidade, da mera experiência com o real.
[1] "Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo." (Teses sobre Feuerbach, retirado da edição da Boitempo de A Ideologia Alemã, pg. 535)
[2] Para quem não está muito inserido no tema, um resumo ultra simplificado e que certamente não terá a precisão que merece: a estratégia etapista se refere a ideia de que o Brasil precisaria passar por uma revolução burguesa, através da aliança com supostos setores anti-imperialistas da burguesia nacional, para a realização das tarefas democráticas (como a reforma agrária) e acabar com a dominação imperialista no país antes de qualquer tentativa de revolução proletária. Foi a estratégia hegemônica do movimento comunista no Brasil sob forte influência das políticas da Terceira Internacional. Atualmente é extremamente criticada, apesar de ainda ser adotada por algumas organizações.
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